Opinião: “Confissões de um ex-libertário”

O primeiro fator importante que me afastou do libertarianismo foi a postura dos próprios ícones libertários. Não queria ser como eles. Não concordava com suas ideias, que soavam ora arrogantes, ora infantis. Em certos momentos de profunda tensão nacional, como quando o PT tinha boas chances de entrar ou de permanecer no poder, percebi que nem sequer conseguiam adotar um mínimo de pragmatismo: como eram todos inimigos do “sistema”, de “tudo que está aí”, vários não faziam muita distinção entre PT e PSDB, o que, para mim, era sinal de cegueira braba.

Nunca gostei dos tucanos, defensores da social-democracia ou, em alguns casos, até mesmo do socialismo fabiano, uma versão mais light do socialismo. Mas daí a não enxergar que o PT era muito pior, que mirava de fato no modelo cubano, que tinha um DNA totalitário e braços armados para executar todo tipo de abuso de poder em nome da causa, vai uma longa distância. Ao repetir que “imposto é roubo” e que qualquer Estado é inaceitável, alguns libertários passaram a não mais constatar a existência do cinza: era tudo preto ou branco.

Tal maniqueísmo me parecia perigoso, pois havia claramente um inimigo maior, mais importante, a ser derrotado. Ficar debatendo o sexo dos anjos na Venezuela não era algo que fazia sentido para mim; era preciso impedir o Brasil de virar a Venezuela antes de qualquer coisa. Vários libertários, porém, pareciam mais interessados em discutir detalhes ideológicos, disputando quem era o “verdadeiro” defensor da liberdade, do que em lutar para salvar o Brasil do socialismo iminente.

Burke sedimentou o caminho filosófico do conservadorismo ao perceber os riscos que a civilização corria com o radicalismo jacobino.

O segundo fator que me afastou dos libertários foi a constatação de que muitos deles queriam a revolução ou nada, sem concessões no caminho, pois estavam mais empolgados com o gozo das ideias “puras” do que com resultados concretos. Era a utopia ou a revolta, pois todos que não fossem libertários só podiam ser… socialistas. E aí misturavam extrema-esquerda com esquerda mais moderada no mesmo saco podre, esquerda carnívora com herbívora, o que era, na prática, a complacência diante do monstro prestes a nos devorar.

Além desses dois fatores externos, outros dois fatores internos foram fundamentais para minhas mudanças. Um deles chama-se idade, ou, como os conservadores gostam de dizer, num ato de autoelogio, maturidade. Chegando perto dos 40 anos, com uma filha que em breve já estaria se aproximando da adolescência (fui pai jovem, aos 25 anos), comecei a pesar certas coisas, a analisar com uma ótica diferente o mundo real, sem me iludir tanto com fantasias. E, sendo pai de uma menina, fiquei mais atento ao que rolava na juventude da geração dela.

Com uma filha adolescente, só podia concluir que essa postura era loucura. Como assim, não ligar para o entorno, para os valores morais disseminados pela população? Percebi que muitos libertários confundiam individualismo com sociopatia, e cheguei a escrever sobre isso. Ao agir dessa forma, esses radicais estavam sendo os inocentes úteis da esquerda em sua guerra cultural. Era tudo que os socialistas queriam: enfraquecer os valores morais, a família e a religião, em especial o cristianismo. Não é teoria conspiratória de reacionário paranoico, mas intenção confessada da turma.

O quarto e último fator relevante de minha guinada a um liberalismo menos libertário e mais conservador foi a leitura de muitos pensadores ligados ao conservadorismo. Tenho o hábito de anotar os livros que vou lendo em ordem cronológica. É uma escolha um tanto arbitrária e caótica. Mas esse padrão acaba saltando aos olhos: perto dos 20 anos, a leitura era concentrada nos libertários. Foi só depois dos 30 anos que comecei a entrar em contato com o ponto de vista mais conservador. Havia uma lacuna em minha formação intelectual, por puro preconceito.

Sim: além de libertário, fui um ateu militante, impressionado com Richard Dawkins e companhia. Ou seja, abracei o pacote completo. Agora vejo como era um grito de revolta contra o abandono do Pai, ou seja, uma típica postura de denegação, como diriam os psicanalistas, pois quem vive para repetir que Deus não existe vive com base em Sua existência. É o famoso “sou ateu, graças a Deus”. Cheguei a preparar um esboço de livro sobre o assunto, atacando todas as “superstições” com fundamento em minha idolatria à Razão, e só agradeço o fato de nunca ter publicado tal obra. Hoje sei como era imatura, e teria vergonha.

O conservador é um liberal que foi assaltado na noite anterior, brinca um ditado. O liberalismo radical é lindo na teoria, mas sabemos que na prática o buraco é mais embaixo. Não vamos esquecer que o “pai do conservadorismo” era um liberal Whig. Burke sedimentou o caminho filosófico do conservadorismo ao perceber os riscos que a civilização corria com o radicalismo jacobino. Seu grande insight foi ter se dado conta de que nosso verdadeiro contrato social inclui aqueles que já morreram e aqueles que nem nasceram ainda – ou seja, trata-se de um pacto entre gerações.

Quem deseja botar fogo em tudo para recomeçar do zero ignora isso, como ignora os limites de nossa razão. Quem já foi mordido por cobra tem medo de linguiça. O conservador, ao contrário do libertário, teme a destruição dos principais pilares civilizacionais, justamente porque sabe melhor o que está em jogo. Prudência é a palavra-chave aqui. Cautela, humildade, respeito às tradições, ao acúmulo de sabedoria no processo lento e longo de tentativa e erro que foi moldando nossas instituições: eis o nome do jogo.

Vejo com espanto que muitos “liberais” não se dão conta da revolução cultural em curso, negam a própria existência da guerra cultural, não entendem que os socialistas se adaptaram e passaram a priorizar a cultura, não mais a economia, como instrumento de poder totalitário. Nessa “revolução das vítimas”, o denominador comum é demonizar o homem branco heterossexual cristão ou judeu, para destruir os pilares de nossa civilização.

Fazer coro a esses revolucionários com base num dogma – o PNA – é servir de massa de manobra para algo muito maior e mais perigoso. Espero que os libertários possam abrir os olhos a tempo e adotar um viés mais conservador, dando ênfase ao aspecto cultural, para salvar o próprio liberalismo desses “liberais” modernos. A civilização ocidental corre perigo, e a liberdade não sobrevive num vácuo de valores. Ou resgatamos aquilo que está sob constante ataque e quase perecendo, ou será a liberdade como a conhecemos que irá morrer. E pior: em nome da própria liberdade!

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

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